Arquivo de agosto, 2021

Eliane Pinheiro

Há algum tempo um companheiro de jornada vem me pedindo para escrever um texto que dialogue com nossos pares, professores e professoras da escola pública, para tratar do tema de nossa concepção de educação. Pensando no número grande de artigos científicos já disponíveis sobre o tema na internet, nas centenas de livros, palestras em vídeo, podcast etc. e o meio pelo qual esse texto que escrevo seria veiculado, optei por escrever de forma leve, simples, ainda que me esforce para não cair em um simplismo que desqualifique nossa discussão. Não raramente docentes marxistas são vistos como os chatos que nunca estão satisfeitos com nenhuma proposta pedagógica apresentadas nos cursos de formação. Seriam pessoas amargas? Arrogantes? Resistentes? Tradicionais? Na verdade, não nos opomos “a tudo”, mas às pedagogias ideológicas, que ocultam sua verdadeira orientação: a filosofia liberal. E quando reafirmamos nossa briga pela educação pública estatal laica de qualidade, fundamentamos teoricamente nossa posição. Pretendo apresentar brevemente a concepção de educação pela qual militamos, quer seja: fundamentada na psicologia sócio-histórica (Ou histórico cultural) de Vigotski, Luria, Leontiev e demais colaboradores; e na pedagogia histórico crítica proposta por Demerval Saviani e outros pesquisadores (Newton Duarte, Ligia Martins, Ricardo Eleuterio entre outros). O ponto central dessa concepção é que, embora seja orientada por uma epistemologia e não perca de vista seu rigor científico, é orientada por uma ética, a ética marxista. Porque é bom que se reafirme que não é possível falar em método marxista senão assumindo a teoria materialista histórica dialética em sua inteireza, o seu caráter revolucionário. Nesse sentido, assim como é uma aberração ser “liberal na economia e conservador nos costumes”, “medieval nos costumes e liberal no modo de produção”… também não é possível afirmar-se como um Vigotskiano na educação e um liberal no mundo fora da escola. Primeiro porque não existe “o mundo fora da escola” de forma dissociada, a parte contém o todo, sempre. Segundo, porque a identificação com as teorias da psicologia sócio-histórica e da pedagogia histórico crítica é necessariamente a assunção do posicionamento anticapitalista, a denúncia das formas capitalistas de alienação e o anúncio da possibilidade de sua superação para a Emancipação Humana. “Emancipação humana” é um termo que, se não me falha a memória, foi usado por Feuerbach e incorporado por superação por Marx em algumas de suas obras. Marx critica o materialismo de Feuerbach por não levar em conta o trabalho sensível humano e a historicidade. Isso quer dizer que, embora muitos militantes de esquerda defendam que nossa luta tem em vista apenas a transformação econômica, rompendo com a dialética objetividade-subjetividade, nós compreendemos que é impossível separar objetividade e subjetividade, consciência e materialidade. Para Marx, a alienação se dá em diferentes níveis: alienação da consciência, do trabalho, estética etc. Embora toda forma de alienação seja decorrente do sistema capitalista, somente a suplantação de uma das formas de alienação não dá conta da transformação social que desejamos. Objetivamos a emancipação de TODAS AS QUALIDADES E SENTIDOS HUMANOS. E o que toda essa divagação tem que ver com a concepção de educação? Isso diz respeito à natureza de nossa tarefa como um dos mais importantes atores da formação humana para a transformação social. Vigotski, em um texto intitulado “A transformação socialista do homem” não dicotomiza objetividade e subjetividade, dizendo que tanto o fim da propriedade privada como a mudança da consciência eram imprescindíveis para a sociedade que desejamos. O aspecto ético-político não abdica do rigor científico: a ciência produzida pelos psicólogos soviéticos sobre o desenvolvimento humano evidenciaram que o ensino de conteúdos científicos de forma problematizada opera mudanças profundas em toda a estrutur psíquica humana. Daí que, as pedagogias que relativizam o ensino dos conteúdos e fortalecem a permanência dos estudantes no senso comum e nas atividades que não os desagrade, prejudica o desenvolvimento desses estudantes. Em nome da criticidade, troca-se os conteúdos científicos pelos slogan políticos superficiais. O menino sai da escola com palavras de ordem na ponta da língua e sem saber ler, escrever, interpretar texto, sem conhecer filosofia, arte… Tais práticas, orientadas pelo movimento da Escola Nova nos anos 1930 (e pouca aderência nas escolas), e nos 90 com mais força pelas políticas para a educação recomendadas pelo Banco Mundial, são duplamente excludentes. Primeiro porque piorou a qualidade da escola do pobre e compromete sua inclusão na sociedade letrada e no mundo do trabalho; segundo (e mais importante), porque prejudica o real pensamento crítico, que só é possível pelo pensamento por conceitos. Ninguém pode ser crítico pelo senso comum. O senso comum, o saber em si, as práticas cotidianas… deve ser o nosso ponto de partida, a nossa forma espontânea de ver o mundo, na sua aparência. Mas somente pelo pensamento por conceitos, que articulam afetos, cognição, memória, comportamento… é que podemos ir para além da aparência da realidade, para sua essência, para o desocultamento das alienações. Com isso, não queremos o retorno às práticas tradicionais mecanicistas, criticadas pelos psicólogos soviéticos. Concordando com Lênin, não queremos o retorno da escola livresca da decoreba. Tampouco temos que aceitar seu extremo oposto, a escola que deixou de ser escola para ser espaço de “caricatura de inclusão”, como escreveu Libâneo em seu brilhante artigo “O dualismo perverso da escola pública brasileira: escola de acolhimento social para os pobres e de conhecimento para os ricos”.

Não temos que curvar a vara dos métodos ativos ou escolanovismo entortando-a a outro extremo para rejeitar o ensino tradicional. Podemos e devemos conhecer e trilhar outros caminhos possíveis em busca de uma escola posicionadamente anti-hegemônica. A pedagogia histórico crítica é um deles.

ELIANE PINHEIRO

Eu sabia que a educação formal cubana era a melhor de toda a América latina. Mas quando estive em Cuba, em uma viagem curta de nove dias, o que vi foi escola funcionando no limite, com escassez de material e estruturas simples, muita coisa confeccionada pelas professoras de forma artesanal. Impressionou-me o compromisso ético-político docente de, apesar das circunstâncias objetivas impostas pelo bloqueio econômico, não se imobilizarem diante das dificuldades. Aqui, num país que pode investir mais em educação, podemos seguir lutando por melhores condições objetivas sem que isso nos impeça de cumprir nossa tarefa ético-política de ensinar. Não é possível que ainda aceitemos os discursos de que há crianças que podem aprender e as que não podem. Que o analfabetismo escolarizado é compreensível e justificável.Ou nos movemos em organização autogestionária em defesa da escola pública contra a privatização ou teremos toda a população defendendo voucher: a mãe prefere a escola particular da memorização vazia do que a escola pública que se quer alfabetiza. O não ensino nos DESMORALIZA. Não dá mais pra achar que existe educação crítica sem ensino de conteúdo científico, sem vivência estética, sem arte e sem filosofia.

O burocratismo sindical precisa ser substituído pela formação política crítica do quadro de profissionais; o pedagogês dos cursos fáceis, dos modismos liberais, pela discussão e estudos aprofundados das teorias de psicologia e pedagogia produzidas por quem comunga do nosso sonho de libertação. A água bateu na bunda, a pressão pela privatização está mais forte que nunca. A negação ao capital, realizada pela esquerda no campo da educação, necessita de práxis revolucionária, para além da briga NECESSÁRIA por condições de trabalho: Prática pedagógica crítica não faz apenas análises sociológicas de problematização da realidade: tem didática, tem planejamento, tem avaliação, compreende como o estudante aprende, tem uma PEDAGOGIA.

Hoje, relendo Mészáros em Educação para além do capital, encontrei isto:

As extraordinárias realizações educacionais em Cuba, desde aeliminação rápida e total do analfabetismo até aos mais elevadosníveis de pesquisa científica criadora – num país que tinha delutar não só contra os constrangimentos económicos maciços dosubdesenvolvimento como também contra o sério impacto de 45 anos de bloqueio hostil – são compreensíveis apenas em face desteenquadramento. Esta realização também demonstrou que não pode existir justificação para esperar a chegada de um “período favorável”, no futuro indefinido. Avançar na estrada de uma abordagem qualitativamente diferente à educação e à aprendizagem pode e deve começar “aqui e agora”, como indicado acima, se quisermos alcançar as mudanças necessárias no momento oportuno”.

Nem isolados nas escolas achando que individualmente e apenas munidos de boa vontade transformaremos a realidade – isso é idealismo; Nem críticos imobilistas, esperando situações favoráveis para atuar;Nem conciliadores, achando que é possível humanizar o capital (toda reforma é provisória); Precisamos nos reorganizar.É difícil ser educadora justamente por essa tarefa TRIPLA: agir dentro da escola com compromisso; agir fora brigando por políticas públicas; e agir todo o tempo pelo fim do capital. Daí a importância da organização política autogestionária, criativa, comprometida e combativa. Trabalho é o que não nos faltará no pós-pandemia… sobretudo porque nosso pacto público com as famílias é que vidas não se recuperam, MAS APRENDIZAGENS SIM…

Qualificando a crítica

Publicado: 24/08/2021 em Reflexões

ELIANE PINHEIRO

Enquanto faço crochê, escuto podcast. Acabei ouvindo um agora que, em defesa da pedagogia histórico crítica, o entrevistado distorce a teoria piagetiana. E achei por bem escrever um pouquinho aqui sobre isso. A crítica dialética deve ser, em primeiro lugar, respeitosa. E respeito não é reportar-se de forma cerimoniosa ao teórico, mas conhecer seus pressupostos a ponto de aprender e apreender. Aprender seus pontos importantes, seus avanços e apreender suas contradições (os nós entre o ideal e o real). Não podemos dizer, por exemplo, que Piaget deve ser desprezado porque que era um biólogo e produziu uma teoria naturalista, biológica. Quem leu qualquer de suas obras sabe que elas são bem didáticas quanto a isso: por depender das interações com o meio e com as pessoas, alguns desenvolvimentos podem acontecer ou não. Por exemplo, nem todo adulto chega ao nível cognitivo das operações formais. Não é o biológico – chegar à idade adulta- que o faz pensar entendendo outros pontos de vista, fazendo comparações, análises, sínteses, desconfiando, criticando, compreendendo analogias ou ironias. Há adultos que não chegaram e outros tantos que jamais chegarão a esse nível de desenvolvimento. Esse tipo de pensamento é construído. Por isso sua teoria é chamada de CONSTRUTIVISMO. E além de biólogo, Piaget foi psicólogo e teria as mesmas qualidades acadêmicas que Vigotski para ser um teórico do desenvolvimento. Paulo Freire era formado em direito e ninguém diz que sua teoria não presta porque ele não era Psicólogo ou Pedagogo. Nossa crítica é sobre o conteúdo, não sobre credenciais. Claro que a formação em qualquer que seja o campo do conhecimento constitui a pessoa em sua totalidade e fundamenta também seu modo de pensar, como a religião, a filosofia, a ideologia… e toda a nossa experiência. Mas usar disso para desautorizar todo um campo de pesquisas sérias é cair na crítica vulgar. Vigotski é um exemplo a ser imitado. Depois de estudar profundamente Piaget, critica os aspectos fundamentais de sua concepção de desenvolvimento humano sem deixar de dizer que Piaget era um gênio que revolucionara para sempre a psicologia. O mesmo fez Marx ao criticar o conteúdo de Hegel e Adam Smith: manteve algumas categorias mudando-lhes o conteúdo.Se nossa crítica não for ética, o que dizemos facilmente perde o seu valor. Aliás, Marx se defende de um filósofo que o criticara por meio de artigos, dizendo: “Não podendo criticar meus argumentos, critica a minha pessoa”.