Arquivo de maio, 2020

ELIANE PINHEIRO
 
Há algum tempo um companheiro de jornada vem me pedindo para escrever um texto que dialogue com nossos pares, professores e professoras da escola pública, para tratar do tema de nossa concepção de educação. Pensando no número grande de artigos científicos já disponíveis sobre o tema na internet, nas centenas de livros, palestras em vídeo, podcast etc. e o meio pelo qual esse texto que escrevo seria veiculado, optei por escrever de forma leve, simples, ainda que me esforce para não cair em um simplismo que desqualifique nossa discussão.
Não raramente docentes marxistas são vistos como os chatos que nunca estão satisfeitos com nenhuma proposta pedagógica apresentadas nos cursos de formação. Seriam pessoas amargas? Arrogantes? Resistentes? Tradicionais? Na verdade, não nos opomos “a tudo”, mas às pedagogias ideológicas, que ocultam sua verdadeira orientação: a filosofia liberal. E quando reafirmamos nossa briga pela educação pública estatal laica de qualidade, fundamentamos teoricamente nossa posição.
 
Pretendo apresentar brevemente a concepção de educação pela qual militamos, quer seja: fundamentada na psicologia sócio-histórica (Ou histórico cultural) de Vigotski, Luria, Leontiev e demais colaboradores; e na pedagogia histórico crítica proposta por Demerval Saviani e outros pesquisadores (Newton Duarte, Ligia Martins, Ricardo Eleuterio entre outros).
O ponto central dessa concepção é que, embora seja orientada por uma epistemologia e não perca de vista seu rigor científico, é orientada por uma ética, a ética marxista. Porque é bom que se reafirme que não é possível falar em método marxista senão assumindo a teoria materialista histórica dialética em sua inteireza, o seu caráter revolucionário. Nesse sentido, assim como é uma aberração ser “liberal na economia e conservador nos costumes”, “medieval nos costumes e liberal no modo de produção”… também não é possível afirmar-se como um Vigotskiano na educação e um liberal no mundo fora da escola.
Primeiro porque não existe “o mundo fora da escola” de forma dissociada, a parte contém o todo, sempre. Segundo, porque a identificação com as teorias da psicologia sócio-histórica e da pedagogia histórico crítica é necessariamente a assunção do posicionamento anticapitalista, a denúncia das formas capitalistas de alienação e o anúncio da possibilidade de sua superação para a Emancipação Humana.
“Emancipação humana” é um termo que, se não me falha a memória, foi usado por Feuerbach e incorporado por superação por Marx em algumas de suas obras. Marx critica o materialismo de Feuerbach por não levar em conta o trabalho sensível humano e a historicidade. Isso quer dizer que, embora muitos militantes de esquerda defendam que nossa luta tem em vista apenas a transformação econômica, rompendo com a dialética objetividade-subjetividade, nós compreendemos que é impossível separar objetividade e subjetividade, consciência e materialidade. Para Marx, a alienação se dá em diferentes níveis: alienação da consciência, do trabalho, estética etc. Embora toda forma de alienação seja decorrente do sistema capitalista, somente a suplantação de uma das formas de alienação não dá conta da transformação social que desejamos. Objetivamos a emancipação de TODAS AS QUALIDADES E SENTIDOS HUMANOS.
E o que toda essa divagação tem que ver com a concepção de educação? Isso diz respeito à natureza de nossa tarefa como um dos mais importantes atores da formação humana para a transformação social. Vigotski, em um texto intitulado “A transformação socialista do homem” não dicotomiza objetividade e subjetividade, dizendo que tanto o fim da propriedade privada como a mudança da consciência eram imprescindíveis para a sociedade que desejamos.
O aspecto ético-político não abdica do rigor científico: a ciência produzida pelos psicólogos soviéticos sobre o desenvolvimento humano evidenciaram que o ensino de conteúdos científicos de forma problematizada opera mudanças profundas em toda a estrutur psíquica humana. Daí que, as pedagogias que relativizam o ensino dos conteúdos e fortalecem a permanência dos estudantes no senso comum e nas atividades que não os desagrade, prejudica o desenvolvimento desses estudantes. Em nome da criticidade, troca-se os conteúdos científicos pelos slogan políticos superficiais. O menino sai da escola com palavras de ordem na ponta da língua e sem saber ler, escrever, interpretar texto, sem conhecer filosofia, arte… Tais práticas, orientadas pelo movimento da Escola Nova nos anos 1930 (e pouca aderência nas escolas), e nos 90 com mais força pelas políticas para a educação recomendadas pelo Banco Mundial, são duplamente excludentes. Primeiro porque piorou a qualidade da escola do pobre e compromete sua inclusão na sociedade letrada e no mundo do trabalho; segundo (e mais importante), porque prejudica o real pensamento crítico, que só é possível pelo pensamento por conceitos. Ninguém pode ser crítico pelo senso comum. O senso comum, o saber em si, as práticas cotidianas… deve ser o nosso ponto de partida, a nossa forma espontânea de ver o mundo, na sua aparência. Mas somente pelo pensamento por conceitos, que articulam afetos, cognição, memória, comportamento… é que podemos ir para além da aparência da realidade, para sua essência, para o desocultamento das alienações.
Com isso, não queremos o retorno às práticas tradicionais mecanicistas, criticadas pelos psicólogos soviéticos. Concordando com Lênin, não queremos o retorno da escola livresca da decoreba. Tampouco temos que aceitar seu extremo oposto, a escola que deixou de ser escola para ser espaço de “caricatura de inclusão”, como escreveu Libâneo em seu brilhante artigo “O dualismo perverso da escola pública brasileira: escola de acolhimento social para os pobres e de conhecimento para os ricos”. Não temos que curvar a vara torta entortando-a a outro extremo para rejeitar o ensino tradicional. Podemos e devemos conhecer e trilhar outros caminhos possíveis em busca de uma escola posicionadamente anti-hegemônica.
A pedagogia histórico crítica é um deles.