ELIANE PINHEIRO

Há uns cinco anos, acho, aprendi com meu amigo Fábio Gomes a diferença entre “Coisa e coisidade” na perspectiva marxista. Ele me dizia: “Bee, a coisa é a coisa em si; a coisidade é a coisa em movimento no real”.

Parece um preciosismo, uma bobagem, não? Não é! Não é! Essa diferenciação foi fundamental para que eu conseguisse elaborar a tese central da minha pesquisa de doutorado. Eu falava de como o ser humano subjetiva – torna sua – as regras morais externas e passa a agir de forma ou obediente e acrítica ou de forma considerada “correta”, segundo princípios e valores aprendidos socialmente que se tornaram traços de sua identidade, de sua conduta. Ou seja, em meu estudo eu precisava diferenciar MORAL e MORALIDADE – a moral é a coisa, o conjunto de regras socialmente estabelecidas: não matar, não roubar, não mentir, não trair, não obter vantagem na desvantagem dos outros etc. Já a moralidade é o sentir-pensar humano em acordo com a moral – é a moralidade posta em prática, é a moralidade em movimento nas relações sociais. Que a moral (a coisa) existe, é fato. Já se eu vou viver segundo a moral (a regra), são outros quinhentos. E quem olha para a qualidade, a natureza da moral vigente? É a Ética, uma disciplina da filosofia, que tanto analisa a moral como a questiona e a transforma (No ocidente, não casar virgem tem deixado de ser um grande drama, uma desgraça, mesmo com a tradição religiosa tensionando pela preservação dessa regra, por exemplo).

E ontem, retomando a leitura de David Harvey – o geógrafo britânico marxista – fiquei bastante provocada pelo alerta que ele faz ao quanto nos últimos quarenta anos as esquerdas têm direcionado todas as suas forças para a coisidade que é o capitalismo e deixado de lado a organização das forças populares contra a coisa – o capital.

Harvey é didático: imaginemos um navio no oceano. Nesse navio há pessoas trabalhando em condições precárias, outras trabalhando com alguma dignidade, há viajantes servidos com toda sorte de luxo, há divisões de tarefas diversas entre a tripulação, há hieraquia entre funções. A relação entre as pessoas pode ser conflituosa, com disputas, com sérios problemas, mas não são essas relações que fazem o navio seguir navegando, mas sua estrutura objetiva, “o maquinário”, as condições físicas do navio. O capitalismo são essas relações NO navio e o capital É O navio em si, é o objeto que precisa estar em condições plenas para navegar… Ou seja, o capitalismo é a forma de sociabilidade que é orientada pelos valores do Capital.

O navio é coisa. As relações são a coisidade. O Capital é a coisa. O capitalismo é a coisidade.

Nos grupos de esquerda – sejam de pesquisa, partidos, movimentos sociais, coletivos – temos direcionado nossos olhares para as relações na sociabilidade capitalista (racismo, machismo, xenofobia, capacitismo, precarização das condições de trabalho etc) e estamos deixando de pensar e agir em como parar em terra firme e pular fora dessa navio. Se as relações – a vida – tem se tornado insuportável, toda reforma, todo remendo para melhorá-la é transitório. Porque viver no navio toda uma vida é um insuportável para quem não está tomando bons drinks na piscina ou comendo a comida gourmet do chef. É como se gastássemos toda nossa energia acalmando os ânimos da população sofrida: “Calma, o calor daqui da cozinha do nosso navio vai passar, estamos brigando por um sistema de ventilação maravilhoso, todo mundo vai cozinhar sem passar mal!”. Quando na verdade deveríamos discutir em como podemos parar de cozinhar pra essa gente e voltar para casa. É claro que as reformas são necessárias: para voltar para casa, precisamos estar vivos! Até que chegue o fim, os meios de uma vida menos insuportável são importantes! Mas essas reformas são um meio, não nosso objetivo final!

Por isso defendo o estudo do método materialista histórico-dialético, o método marxista, pelas classes populares. É o povo organizado quem vai parar esse navio numa boa terra. E para isso, precisa apreender a realidade, sacar o que está rolando, como essa porr@ tá estruturada.

No nosso corpo já trazemos esse desejo como conhecimento imediato, o sofrimento cotidiano já nos coloca os questionamentos necessários – não é possível que viver seja só isso. O que precisamos é do conhecimento mediado, da resposta certa. Quem está dando duro na tripulação não precisa só de mais paleativos para suportar mais um dia, mais um dia, mais um dia… Precisa também de perspectiva, de organização para outra forma de vida! A academia pequeno burguesa e parte das direções dos partidos nunca esteve ou já não está mais na cozinha e, por ter algum acesso à mesa de jantar (ainda que pontual, de migalhas), não vê tanta urgência em pular fora desse navio maldito.

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Ser menos

Publicado: 21/07/2022 em Reflexões

Eliane Pinheiro

Uma coisa que considero bastante interessante na construção da subjetividade e da ética na sociabilidade capitalista é que o dinheiro tudo absolve, justifica, ainda que sejam colocadas algumas limitações morais/legais: se se tornou fiscal em favor do governo e contra sua classe social porque precisava de dinheiro, ok; se aceitou propina, é feio; se explora a mão de obra dentro dos parâmetros legais, ok; se rouba, é feio etc. Esses são exemplos de algumas regras morais acordadas socialmente sobre quando receber dinheiro em troca de uma atividade é ou não certo. Todavia, há alguns anos me encasqueta que, na ética burguesa, é OK que as pessoas deixem seus pais, mães, avós, filhos, grandes amigos e amores para trás por dinheiro: uma oportunidade que surgiu em outro país, outro estado, outra cidade, oportunidade de ter mais para ser mais. O sucesso é maior que o amor e que a comunidade. Já na ética xavante, não se deixa, sob hipótese alguma, a comunidade, sobretudo os velhos. Como não é o individualismo, mas a ética do comum que orienta a subjetividade e a objetividade desse povo, a regra moral é que se valorize os laços afetivos e o cuidado. Entre os xavantes não aconteceria de um velho morrer sozinho e seu corpo ser descoberto em decomposição depois que se verificasse que as cartas não foram recolhidas na caixinha do correio ou que os boletos se avolumam. A pesquisa de Silva Lane sobre os Xavantes é extremamente tocante, para mim, justamente quando descreve a concepção de que os velhos vivem muito se tiverem os netos ou crianças da comunidade por perto e participarem das rodas de danças e festas. Segundo a história que contam, descobriu-se que a saudade enfraquece e mata quando os xavantes, em guerra com outra etnia, sequestrou as mulheres do povo inimigo e os guerreiros se renderam depois de alguns dias porque estavam “fracos de saudade”. Quando os salesianos levaram as crianças das comunidades para interná-las em seus colégios, os velhos começaram a adoecer fácil e a morrer mais cedo. Daí chegou-se à conclusão: a saudade, a falta da pessoa amada, a solidão, diminui o sentido de vida, o desejo de vida, adoece, maltrata, mata.

O café passado na hora e a prosa solta com um parente ou amigo é nada. Mudar-se para o centro para limpar-se das marcas de pobreza, de periférico, “ascender a humano que vale mais” é tudo. Comunhão é nada, individualismo é tudo.

Marx cantou essa bola: na ética capitalista o dinheiro (e todo seu poder de fetichização) é tudo e o amor, nada.

ELIANE PINHEIRO

No entanto, o direito humano à liberdade não se baseia na vinculação do homem com os demais homens, mas, ao contrário, na separação entre um homem e outro. Trata-se do direito à essa separação, o direito do indivíduo limitado, limitado a si mesmo. A aplicação prática do direito humano à liberdade equivale ao direito humano à propriedade privada“. (MARX, 1843/2010a, p. 49).

Das coisas que tenho sentido-pensado nos últimos anos e que seguem me cutucando, como um incômodo que não consigo silenciar: do quão nós, a esquerda, ainda temos no socialismo uma resposta ao capitalismo em termos puramente econômicos. O quanto ainda estamos atados à concepção liberal de existência humana: caminhamos, naturalizamos e reproduzimos o individualismo burguês como se este nos fosse entranhado, como se fosse parte da natureza humana. E não é. Essa forma de alienação – nós separados uns dos outros, da nossa comunidade – é própria da ética capitalista. E essa dimensão afetiva me interessa muito – realmente tenho gasto tempo olhando para isto: mesmo com todo nosso discurso comunista ainda não aprendemos a amar, a ser de outra forma que não dentro dos moldes subjetivos da sociabilidade capitalista. Romper com o individualismo burguês – o pavor de se relacionar de forma inteira, desarmada e ser roubado de si mesmo, de perder a liberdade ou a individualidade – é uma difícil missão mesmo nos coletivos/pequenos grupos de comunistas apaixonados. Nesse sentido temos muito a aprender com a ética dos povos originários: a comunhão não é ameaça à individualidade, mas um não-lugar seguro para que a individualidade humana se desenvolva em toda sua potencialidade. A impressão que tenho é que nossos encontros são artificiais, datados, que não somos uns nos outros, que somos ilhas inacessíveis cuja troca é racionalista, superficial – parece que a gente não se conecta e tem um pavor grande de ser gente-gente, de relaxar de nossas personas – nossos encontros parecem ser sempre grandes reuniões no sentido mais burguês do termo “reunião”. Não sabemos ouvir, temos respostas prontas, não olhamos dentro do outro, fugimos do simples. Pausamos nossas solidões pra dividir uma cachaça e retornamos à elas ainda mais presos a nós mesmos. Talvez por isso o apelo religioso sobre o modo de vida seja tão superior ao da esquerda . A religião acolhe o homem e a mulher cansados, fala-lhes aos afetos. E sinto que parte de nós da esquerda entende que a proposta de uma nova sociabilidade seja a proposta de uma nova economia e não de outras formas de vida no sentido amplo e monista do termo. O comunismo é mais do que isto, é uma ética, é sobre ser feliz: é como submeter a economia, a política, toda a estrutura social em nome da vida plena, do amor verdadeiro, do respeito à dignidade humana, à emancipação completa de todos os sentidos humanos.

Um trechinho da minha tese em que trato da relação entre a sociabilidade capitalista e a formação da moralidade, da consciência:

“Mészáros (1970/2016), afirma que a liberdade individual enquanto ideal político e moral nasce no período renascentista, defendida pelos filósofos liberais como “direito natural”, adjetivada como condição humana, “inerente ao indivíduo isolado” (MÉSZÁROS, 1970/2016, p. 237). Quando remete a causa da necessidade de liberdade individual ao natural, a narrativa liberal oculta os reais fatores causais que a engendraram:

[…] Os filósofos começaram a se preocupar intensamente com os problemas da “liberdade individual”. Isso se deveu – como já vimos- ao desenvolvimento dinâmico das relações capitalistas de produção, que exigiram a extensão universal da “liberdade” para cada indivíduo de modo a ser capaz de estabelecer “relações contratuais livres” com outros indivíduos, com o propósito de vender e alienar tudo que lhe pertence, incluindo sua própria força de trabalho”. (MÉSZÁROS, 1970/2016, p. 236).

O apelo à liberdade individual não nasce, portanto, da necessidade natural humana, mas da necessidade do capital de alienar a existência humana e reificar as relações sociais para o desenvolvimento de suas forças produtivas. “Ao defrontar-se com as forças e os instrumentos incontroláveis da atividade produtiva capitalisticamente alienada, o indivíduo busca refúgio em seu mundo privado autônomo”, explica Mészáros (1970/2016, p. 239).

A construção de seu mundo privado inclui seu papel como consumidor das mercadorias para a perpetuação do sistema capitalista: Nesse domínio da privacidade – no qual o indivíduo afirma sua “soberania” ilusória (sob pesada hipoteca, mas grotescamente glorificada por fantasias ingênuas, expressas em slogans do tipo “o lar do inglês é o seu castelo”)-, a liberdade pode parecer completa, porque os objetivos e os limites da ação parecem coincidir, parecem estar em perfeita harmonia com os meios e as forças para sua execução. Todavia, a contradição subjacente é assombrosa. A libertação relativa do ser humano em relação à sua dependência direta da natureza é alcançada por meio de uma ação social. Não obstante, por causa da reificação das relações sociais de produção, essa realização aparece em uma forma alienada: não como independência relativa em relação à necessidade natural, mas como liberdade em relação às restrições impostas pelos laços e relações sociais, como um culto cada vez mais intenso à “autonomia individual”. Esse tipo de alienação e reificação, ao produzir a aparência enganosa da independência, autossuficiência e autonomia do indivíduo, confere ao mundo do indivíduo um valor per se, abstraído de suas relações com a sociedade, com o “mundo lá fora”. A autonomia individual fictícia passa a representar o polo positivo da moralidade, e as relações sociais contam apenas como “interferência”, como mera negatividade. A realização egoísta interesseira é a camisa de força imposta pelo desenvolvimento capitalista ao ser humano, e os valores da “autonomia individual” representam sua glorificação ética. (MÉSZÁROS, 1970/2016, p. 239).”

Sobre cultura, arte e a Anitta

Publicado: 21/04/2022 em Reflexões

ELIANE PINHEIRO

Estou buscando alguma energia aqui (parece que já estamos em julho, né, professoras?) pra entrar na discussão sobre o que é cultura, o que é arte, se Anitta atrapalha ou avança o feminismo.
Pra não incorrer em mal-entendidos, o ideal seria que eu escrevesse um texto mais longo que fosse dando conta de ir respondendo possíveis questionamentos do leitor ou da leitora. Mas meus planos hoje são fazer cuscuz, tricô e ler literatura não científica.
Então só queria levantar alguns pontos, tentando me orientar sempre pelas teorias que me alimentam:

  1. Tudo que os humanos produzem e duplicam para novas gerações é cultura. Algumas culturas são suplantadas no decorrer dos séculos, ou incorporadas à outras: dificilmente haverá cultura “pura”. Então Gretchen, Carla Peres, Valesca Popozuda e Anitta são sim, cultura.
  2. Algumas análises sobre Cultura a dividem em categorias para melhor compreendê-la: cultura de massas, cultura erudita, cultura popular, arte… A cultura de massas é apropriação do capital de expressões da cultura mudando algumas características de ruas raízes originais para torná-la mais consumível, “mais limpa”, mais mercadológica. Por isso, por mais “novidade” que seja um sucesso de filme, livro, música… vendidos em grande escala, é possível identificar um padrão de corpos, de danças, de linguagem, de enredo, de apelo à emocionalismo porque, uma vez que o objetivo é alcançar o lucro, a cultura de massa não pode desagradar o consumidor.
  3. A cultura popular é riqueza imaterial da humanidade e historicamente é negada pelas camadas da classe dominante. Por ter uma estética muito específica (ligada ao “artesanal”, ao simples), muitas vezes é relegada à invisibilidade ou tida como simplória ou de mal gosto. Poucas pessoas conhecem Lia de Itamaracá ou os blocos/orquestras de Pífano. No domingo retrasado uma casa de cultura do fundão da zona leste tinha seis pessoas no público para assistir um espetáculo de dança afro. A alienação do trabalho, produzida pelo capitalismo, aliena (separa) as pessoas uma das outras e universaliza uma cultura dominante. Isso enfraquece a vida em comunidade e, por consequência, a cultura popular.
  4. Dermeval Saviani tem uma síntese interessante sobre como não é possível separar a cultura tida como erudita da cultura popular. Como a realidade é dialética, uma nega e contém a outra.
  5. Já a estética é uma disciplina na filosofia e tem na arte sua expressão. Hegel, Marx, Agnes Heller, Mészáros e sobretudo Lukács, têm formulações interessantes sobre a arte. Vigotski escreveu duas obras em que trata da Psicologia da Arte (e são deliciosas, recomendo), onde apresenta, por meio de método científico, a relação da arte com o desenvolvimento humano. Humanos precisam de arte tanto quanto de boa alimentação: é injusta a desigualdade social que leva pessoas a padecerem de desnutrição alimentar e simbólica. Elkonin relaciona o jogo e a arte tanto na sua gênesis como na importância FUNDAMENTAL para o desenvolvimento humano integral. Tanto o jogo quanto a arte tratam da realidade humana, inclusive do não vivido. Uma criança que é proibida pela mãe de mexer na panela que está no fogo, vai até o quintal e “cozinha” cascalhos e folhas sobre uma grande pedra-fogão. Tanto no jogo de faz de conta como na arte, podemos viver o não vivido, liberando as “energias” reprimidas.
  6. Tanto para Vigotski quanto para Lukács, a arte não é nem puro emocionalismo barato, nem racionalismo planfetário. É expressão estética de afeto-cognição. Vigotski diz que quando o pensamento fracassa, isto é, quando a linguagem racional não dá conta de organizar o pensamento, os humanos se expressam por outras linguagens: a música, a pintura, a dança, literatura (isso não é lindíssimo?). Um poema pode calar mais fundo uma grande inquietação do que um texto argumentativo sobre a tal da inquietação. A obra contém, portanto, afetações de um corpo inteiro que pode afetar outros corpos!
  7. Vigotski, tratando da questão psicológica da arte coloca a catarse como característica fundamental da obra: o corpo afetado entra num “curto-circuito”, numa experiência rara em que afeto e cognição se unem de forma a operar transformações qualitativas na personalidade da pessoa. Tomemos como exemplo uma pessoa que nunca foi convencida por meio de argumentos racionais de que homossexuais não possam escolher dominar seus desejos. Sua religião a fez convicta que homossexuais gostam de “safadeza”, são imorais. Ao assistir um filme ou ler uma literatura em que a personagem principal é uma lésbica que expressa grande sofrimento por ser vítima de violência, essa pessoa que assiste pode ter uma catarse que a “bagunce” completamente de modo a entrar em conflito com suas certezas. A arte tem o poder de nos fazer sentir-pensar histórias que nunca vivemos. Diminui a solidão, une humanos rompendo a lógica da distância no tempo e na geografia, une mortos e vivos. É fascinante que nós humanos tenhamos produzido isto!
  8. Lukács fala sobre a pobreza da arte panfletária por abdicar da experiência subjetiva e querer ser uma catequização, um convencimento sobre determinada visão de mundo. Fala tb contra o emocionalismo barato que só quer fazer chorar ou levar à euforia (os filmes de drama de cultura de massa têm muito isso: a música triste + a morte de uma personagem; a música alegre e o final feliz etc). Distraem ao invés de “integrar” a pessoa em si mesma. A arte sempre é arte de corpo inteiro.
  9. Agora sobre a Anitta: para mulheres burguesas, brancas, que vêm de parentescos cuja tradição é a estrutura familiar monogâmica, cristã, com educação formal, cuidado e vigilância 24 horas por dia, com futuro prescrito etc., as cantoras pop que simulam masturbação no palco – de Madona a todas as outras que vieram e virão – são uma baita expressão de libertação. Para nós, as periféricas, a novidade seria totalmente o inverso: historicamente as mulheres negras sofrem “a solidão da mulher negra”, os afetos que sobram é o de ser amante, o toque e o carinho durante a transa… Entre nós nunca foi novidade a mãe com um filho de cada pai. Muitas meninas e meninos são criados “soltos na rua” porque nossas mães, tias e vizinhas estão atravessando a cidade para cuidar das meninas brancas para que as criem comportadas e dentro dos padrões. A “libertação sexual” da branca é uma resistência às religiões judaico-cristãs. As religiões de matrizes africanas não colocam a figura feminina como casta e sem curvas. É compreensível que o feminismo burguês ache revolucionário tudo que contrarie a sua boa educação de berço. Sexo, peito à mostra… é uma grande questão pra vcs, pra vcs! Essa “revolução” sempre esteve presente na cotidianidade periférica. Como diz a música da Bia Ferreira, “há milianos que cês tão queimando sutiã. Nós, as mulher preta só serve pra vcs mamar nas tetas. Ama de leite dos brancos”. As críticas de bell hooks à Beyonce era justamente por reforçar a ideia de que as pessoas negras são sexuais, comíveis (e tb por reforçar a ideia do consumismo como redenção). Desde Platão a base da pirâmide é tida como a alma de bronze que tem sua energia nos quadris e ventre. Já as almas de ouro têm a energia na cabeça e são dadas à filosofar, pensar e mandar. Adivinhem qual tipo humano nasceu para ser explorado no trabalho braçal e qual nasceu para pensar e organizar a sociedade?
    Não há revolução quando se mantém a mulher latina e negra no lugar que sempre a colocaram: a sensual, gostosuda, louca por sexo. Respeito as que querem ser sexy, mas a sensualidade feminina imposta pelo patriarcado é um fardo. A bermuda com chinelo, o conforto, é privilégio dos machos. Nós somos tidas como relaxadas quando nos damos ao direito de um moletom com camiseta GG.
  10. Sim, aqui embaixo rebolamos a bunda desde sempre e isso não é virtude nem defeito pra gente. Não é revolução nem atraso, apenas é. Existe. As velhas, as novas, os viados, os garotos. Gostamos de nos divertir com nossos ritmos e nossas danças. Qual a grande novidade? A novidade mesmo pra gente seria parar de enterrar jovem preto, ter mais gente na família com formação universitária, ter acesso e aprender a comer arte, valorizar e resgatar nas periferias a cultura popular ( que é solapada pela cultura de massa nas periferias), ter trabalho com direitos, ter escolas sem violência, ter direito à aposentadoria com idade pra usufruir dela, ter casa própria, conseguir marcar a cirurgia no SUS, ter políticas públicas de modo que as igrejas fundamentalistas não sigam sendo a principal alternativa ao povo que sofre tanto… Essas coisas que quem tem herança não precisa se preocupar. Aliás… essas reforminhas, esses poucos direitos pelo quais lutamos não são um fim em si mesmos. São apenas um meio para alcançarmos o fim do sistema que mantém as heranças e a miséria na fartura. Feminismo sim, antirracista e anticapitalista!

Eliane Pinheiro FERNANDES*
Cláudia Leme Ferreira DAVIS**

Resumo
O presente texto versa sobre a questão da práxis pedagógica de enfrentamento à violência entre estudantes. A partir de pesquisa em nível de mestrado, cujo objetivo foi investigar se condutas orientadas pela Teoria Piagetiana sobre o Desenvolvimento Moral contribuíam para a diminuição dos episódios de violência entre alunos. Teoricamente, o trabalho orientou-se pela proposta piagetiana, tendo em vista que nela se entende a empatia, o respeito mútuo e a cooperação como o inverso da violência. Além disso, o agir moral é orientado pela ideia de justiça e não se mantém, portanto, por medos de punição ou de rompimento com o contrato social. Finalmente, essa abordagem supõe que as aprendizagens ocorrem na e pela experiência e, assim, os episódios de violência podem constituir oportunidades para o desenvolvimento da moral autônoma. Ainda do ponto de vista teórico, o conceito de práxis que fundamentou esse trabalho é advindo do método materialista histórico dialético, justamente porque concebe pensamento e ação como uma unidade dialética. Participaram da pesquisa três docentes, cada um atuando em escolas públicas distintas em São Paulo, com frequentes episódios de violência verbal e física entre estudantes. Foram realizados três encontros de formação, nos quais além de disponibilizar literatura sobre o tema, fez-se também um acompanhamento
virtual da implementação do que foi neles sugerido. Nesse processo os docentes passaram a tentar orientar suas práticas segundo a teoria sugerida, mantendo constante comunicação por meio do aplicativo WhatsApp. Transcorridos dois meses, foi realizada uma entrevista com cada participante, para que eles avaliassem sua práxis. Os dados coletados foram transcritos e organizados em seis categorias de análise, das quais apenas uma delas será apresentada: “‘Hoje foi difícil e fiquei um pouco perdida’: o processo de formação e o exercício da práxis”. Os resultados indicaram que houve ampliação do repertório teórico dos participantes; diminuição dos episódios de violência; aumento da cooperação entre os alunos; e, ainda,
reflexão crítica sobre os limites da teoria piagetiana em relação à realidade escolar.

Palavras-chave: práxis docente, violência na escola, autonomia moral.

Abstract


This text focuses on the question of pedagogical praxis of coping against violence among students. Based on a Masters research, its objective was to investigate whether student’s conducts guided by the Piagetian Theory of Moral Development contributed to reduce episodes of violence among students. Theoretically, the work was guided by the Piagetian proposal, in view of the understanding of empathy, mutual respect and cooperation as the inverse of violence. Moreover, moral action is guided by the idea of justice and is therefore not maintained by fears of punishment or disruption with the social contract. Finally, this approach assumes that learning takes place in and through experience and, thus, episodes of violence can constitute opportunities for the development of autonomous morality. From a theoretical point of view, the concept of praxis that founded this work comes from the dialectical historical materialist method, precisely because it conceives thought and action as a
dialectical unit. Three teachers of different public schools in São Paulo participated of this research, each of them with frequent episodes of verbal and physical violence among students. Three training meetings were held, in which, in addition to providing literature on the subject, a virtual monitoring of the implementation of what was suggested was also made. In this process, the professors began to try to guide their practices according to the suggested theory, maintaining constant communication through the WhatsApp application. After two months, an interview was conducted with each participant, so that they could evaluate their praxis. The collected data were transcribed and organized into six categories of analysis, of which only one of them will be presented: ” ‘ Today was difficult and I was a little lost ‘: the process of
teacher’s training and exercise of praxis”. The results indicated that the participants ‘
theoretical repertoire was enlarged; decreases have occurred in episodes of violence;
cooperation have increased among pupils; and, still, critical reflection on the limits of the Piagetian theory in relation to the school reality.

Keywords: teachers’ praxis; school violence; autonomous moral.

“A teoria na prática é outra”: o velho problema da dicotomia

A educação brasileira vem sofrendo, nos últimos anos, as interferências de grupos
interessados em gerir a educação pensando, sobretudo, no lucro financeiro. Derivam daí as reformas curriculares e a reformulação das políticas de formação docente orientadas pela visão liberal. Há, assim, forte pressão pela diminuição das disciplinas teóricas dos cursos de pedagogia e licenciaturas, para que se dê maior ênfase à dimensão prática. A defesa desse modelo de formação se ancora na crítica aos cursos que formavam docentes que não relacionavam os conteúdos aprendidos ao fazer pedagógico. De fato, estamos diante de dois extremos: de um lado, a compreensão de que a teoria é letra morta com a qual não se deve perder tempo, pois trata-se de um formalismo sem muita aplicabilidade e, de outro, o ensino de teorias que dificilmente se efetivam na educação escolar, com docentes recém-formados
com pouca ou nenhuma ideia sobre como lidar com os desafios do cotidiano escolar. Esse tipo de cisão entre teoria e prática fortalece a velha ideia do senso comum, na qual se afirma que “a teoria, na prática, é outra”. A solução para essa contradição está na práxis. O conceito de práxis que norteia esse trabalho é o materialista histórico dialético, no qual teoria e prática formam uma unidade dialética (VAZQUEZ, 2011). Ora, se estamos diante de um problema que emerge da concretude do ambiente escolar – a violência na escola –, então optamos por buscar meios de
pensar seu enfrentamento e eventual superação no exercício da práxis: debruçamo-nos sobre teorias que respondam a essa questão e verificamos sua aplicabilidade, não de forma mecânica e, sim, por meio da prática-crítica que, ao invés de simplesmente se submeter à teoria, a analisa, transforma e reinventa-a por meio da ação consciente, num exercício dialético que incide em ambas as dimensões. Entendemos ser por meio da práxis que se qualifica a formação docente, porque assumimos que, mais do que o estudo das teorias que possam contribuir com o fazer docente, a práxis é a superação da contradição entre o dizer e o fazer, permitindo que a prática não seja espontaneísta, nem a teoria puro “verbalismo”, que não se verifica na ação (FREIRE, 1981) ou, como bem sintetiza Vasquez (2011, p. 241), a práxis “[…] é atividade teórico-prática, que tem um lado ideal, teórico, e um lado material, propriamente prático, com a particularidade de que só artificialmente se pode separar um do outro”.

Referenciais teóricos
Para discutir a práxis pedagógica de enfrentamento da violência entre estudantes, faz-se necessário tratar brevemente de dois aportes teóricos: a filosofia da práxis e a psicologia do desenvolvimento moral, como norteadora dessa práxis em específico.

Práxis
Embora suas raízes sejam aristoléticas, discutida por Hegel como a consciência da
atividade, na qual o sujeito dá razão ao existente de forma crítica (VAZQUEZ, 2011), é em Marx que essa filosofia adquire sua dimensão transformadora. Para este autor, ex-hegeliano, era preciso ir além da aparência dos fenômenos, tal como propunha Hegel, mas desde que se buscasse compreender e apreender a realidade para transformá-la:

[…] É na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a
realidade e o poder, o caráter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a
realidade ou não realidade, de um pensamento que se isola da práxis é uma
questão puramente escolástica. […] A vida social é essencialmente prática.
Todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua
solução racional na práxis humana e no compreender desta práxis. […] Os
filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão,
porém, é transformá-lo. (MARX 1845/2007, p. 533)

Para Marx, a práxis é, portanto, atividade humana prático-crítica revolucionária. Na
educação, área que nos interessa aqui, a práxis é a luz para a prática pedagógica consciente, intencional, crítica, com vistas à transformação da realidade e ao 576 aperfeiçoamento da teoria. E é justamente por conceber a “caducidade de todas as teorias” que o par dialético teoria-prática é mutilado pelos dogmáticos: “a prática é vista com receio, pois só viria a empanar a pureza da teoria” (VAZQUEZ, 2011, p. 111). Entretanto:

A teoria em si não transforma o mundo. Pode contribuir para sua
transformação, mas, para isso, tem de sair de si mesma e, em primeiro lugar,
ser assimilada pelos que hão de suscitar, com seus atos reais, efetivos, essa
transformação. (VAZQUEZ, 2011, p. 237).

À supervalorização da teoria, contrapõe-se à crítica que supervaloriza a prática:

[Para o prático] a teoria se faz desnecessária ou nociva à prática. Em vez de
formulações teóricas, temos, assim, o ponto de vista do “senso comum”, que
docilmente se dobra aos ditames ou exigências de uma prática esvaziada de
ingredientes teóricos. Em lugar desses últimos, temos toda uma rede de
preconceitos, verdades estereotipadas e, em alguns casos, superstições, além
de uma concepção irracional (mágica ou religiosa) do mundo. A prática
basta-se a si mesma e o senso comum situa-se, passivamente, numa atitude
acrítica, em relação a ela. O senso comum é o sentido da prática.
(VAZQUEZ, 2011, p. 210, acréscimos em colchetes, nossos).

Segundo o autor, entre teoria e atividade prática transformadora há que se organizar
planos concretos de ação. Nosso plano concreto de ação consistiu, portanto, em: buscar teorias no campo da psicologia que tratassem da moral; eleger a teoria que melhor pudesse ser relacionada à realidade escolar; realizar encontros de formação com os docentes participantes da pesquisa; acompanhar o processo da práxis docente; analisar criticamente a prática e a teoria e, finalmente, apontar novas necessidades teóricas sobre o tema.

Desenvolvimento moral

Embora a concepção de práxis que orienta esse trabalho seja fundamentada no
materialismo histórico dialética, não encontramos, na psicologia sócio-histórica, trabalhos que se voltassem a questões relativas a como os seres humanos desenvolvem a moral, já que nos interessava não apenas conhecer explicações diversas para o fenômeno, mas proposições que indicassem caminhos a serem percorridos com os docentes participantes da pesquisa, para o enfrentamento da violência entre estudantes. Piaget (1994), ao sugerir que algumas práticas
podem facilitar o desenvolvimento de uma moral inclinada à justiça, à solidariedade e à cooperação, pareceu-nos ser a que melhor orientaria a resolução de tais problemas. Segundo esse teórico, há três níveis morais: o da anomia, o da heteronomia e o da autonomia. A anomia, presente nos seres humanos de seu nascimento até por volta dos três anos, implica completa ausência de regras. A heteronomia caracteriza-se pela obediência às regras, seja por medo de romper com os vínculos sócio-afetivos com figuras de autoridade (professores, chefes, mãe, pai, etc.) e medo de se ser punido, já que a submissão à regra é expressão do certo, sem questionamentos sobre sua legitimidade (sacralidade da lei). Desse modo, na heteronomia, a tendência é a de só se fazer escolhas éticas quando se tem certeza de anonimato e de impunidade. Por fim, a autonomia é denominada por Piaget (ano) como a moral “da consciência”, quando o sujeito é orientado interiormente sobre suas escolhas, levando em conta o alcance de seus atos e por eles se responsabilizando, independente de qualquer pressão exterior. Grosso modo, faz-se o certo não por temor de ser punido, mas
porque se considera que é preciso assim agir, porque essa é a ação adequada. Ou seja, o juízo moral está ancorado na ética, de sorte que agir contra os próprios valores é trair a si mesmo, ainda que não exista a possibilidade de ser descoberto como infrator de uma regra tida como correta. Nesse nível moral, uma lei pode ser considerada injusta e um crime justificável. Para não cairmos no relativismo moral, citamos como exemplo a situação dos trabalhadores sem teto no Brasil que, na luta pelo direito à moradia, ocupam prédios ociosos em centros urbanos.
Embora a lei defenda o direito à propriedade privada e o poder judiciário possa emitir
mandatos de reintegração de posse e mesmo usar seu forte aparato militar para tanto, um sujeito autônomo tenderá a defender que nenhum ser humano pode “morar na rua”, ser um ‘sem teto’, um desabrigado, exposto às intempéries e às violências urbanas existentes em nosso país.
Piaget conclui, por meio de suas pesquisas, que as regras impostas verticalmente, o
respeito unilateral (devido apenas à figuras de autoridade), o individualismo, o ensino
tradicional, os castigos e as lições de moral, são reforçadores da heteronomia moral, já que a compreensão da natureza das regras, o trabalho cooperativo, o respeito mútuo (devido a todos, independente de idade ou posição social), a sanção que exige do indivíduo reparação ao dano causado (quer dano material ou afetivo) facilitam o desenvolvimento do senso de justiça que marca a autonomia moral. Pesquisas brasileiras em larga escala evidenciaram que a violência entre os estudantes é um problema grave, que penaliza docentes e estudantes. Assim, buscamos investigar se as práticas de resolução de conflitos e construção coletiva de regras contribuiriam para a diminuição dos episódios de agressão física e verbal (xingamentos de
cunho racista, misógino, xenófobo, lebtfóbico, capacitista etc.) entre alunos e para a melhoria do clima escolar. A teoria piagetiana, para tanto, deveria desdobrar-se em ação em sala de aula, por meio da participação de docentes que não aplicassem mecanicamente essa teoria e, sim, participassem de um processo em que se analisaria criticamente tanto a própria prática como a teoria, fazendo o movimento dialético da práxis, para transformar a realidade objetiva.
Participaram dessa pesquisa três docentes de diferentes escolas públicas da cidade de
São Paulo. O critério de seleção foi que os participantes lecionassem em unidades escolares localizadas em bairros de periferia porque, segundo ROLIM (2008), são nelas que o problema da violência mais se faz presentes. Uma vez que a práxis não se refere a resultados e, sim, a processos, os dados foram coletados por meio de mensagens de texto e de voz pelo aplicativo WhatsApp, de modo a permitir aos participantes livre acesso para tirarem dúvidas, fazerem desabafos, narrarem experiências exitosas ou frustradas, ainda no “calor da emoção”. Ao final de dois meses, os docentes responderam individualmente a uma entrevista semiestruturada,
para avaliarem o processo vivido durante a pesquisa. Foi extenso o volume de dados
coletados, os quais foram transcritos e organizados em seis categorias de análise
(FERNANDES, 2017). Trataremos, a seguir, apenas da categoria sobre o exercício da práxis.

O processo de formação, o exercício da práxis: “hoje foi difícil e fiquei um pouco
perdida”

No primeiro encontro com cada docente em particular, já apareceu um dado comum,
que muito nos chamou a atenção: embora sofressem com o problema da violência entre estudantes em suas escolas, os professores agiam guiados pela experiência imediata, pelo senso comum e não consultavam a teoria. O fato indicava não só a fragilidade da formação docente como, também, a ausência de iniciativa não apenas deles, como, ainda, da equipe gestora, para pesquisar e trazer à discussão coletiva, material sobre problemas, como esse, sofridos por toda a comunidade escolar. Além disso, a formação pedagógica continuada em serviço, ao invés de partir de problemas concretos do cotidiano escolar e da necessidade dos professores e professoras, pautava-se por programas curriculares definidos, preparados e impostos à rede de ensino municipal, pela secretaria de educação. Os muitos e ignorados pedidos de professores e professoras por orientação acerca de como agir perante a violência
eram entendidos como tecnicismo ou demanda de “receitas prontas”. Assim, o horário coletivo de formação docente dava prioridade a atividades burocráticas e não a estudos teórico-práticos.
Segundo Fullan e Hargreaves (2000 p. 30), práticas de formação “de cima para baixo”,
a partir das reformas dos currículos formulados pelas Secretarias de Educação, têm grandes chances de fracassar: “Uma mudança que não envolva os professores e que não tenha seu apoio costuma terminar como uma mudança para pior ou para nada”. Quando o tempo de formação continuada é dedicado a leituras que não guardam relação com as necessidades dos docentes, ou seja, quando a formação não se conecta aos desafios do cotidiano escolar, a possibilidade de bem qualificar a ação fica tão comprometida que a práxis não ganha vida.
Concordamos com Marx (1843/2010, p. 46-47) quando afirma que “a teoria só se
efetiva num povo na medida em que representa a concretização de suas necessidades”. De fato, sem um ambiente no qual se possa dialogar com confiança e esclarecer dúvidas, planos acabam frustrados em razão de dificuldades de várias ordens; sem buscar conhecer as teorias que possam responder às questões que emergem do cotidiano, não há como se arriscar no exercício da práxis. A formação continuada docente fica, nessas condições, esvaziada de sentido.
Ao pensar com os docentes sobre O QUE fazer, é imprescindível pensar no COMO
fazer. Nos três encontros formativos realizados antes da atuação dos docentes junto aos estudantes, surgiram muitas dúvidas sobre como atuar para construir coletivamente regras.
Frases assim foram ditas pelos professores: “Estou bem preocupada, apreensiva, porque eu vejo uma possibilidade de isso dar certo” ou “E se as crianças não falarem as regras, eu vou dando dicas?”, dentre outras. Esses questionamentos sobre COMO fazer apontavam três preocupações dos participantes: (a) quanto à “experimentação da teoria” (pois se a professora via a “possibilidade de dar certo” e concordava com os pressupostos estudados, ela também temia não conseguir a colocar em prática), alertando-nos da possibilidade de essa fala indicar uma avaliação negativa acerca das próprias habilidades de gestão de sala de aula ou (e isso é bastante comum) que, quando em contato com teorias que não se verificam na prática, conclui-se que ela não foi executada corretamente. Parecia-nos que os docentes agiam como
se a teoria fosse expressão de um poder intelectual muito acima de seu nível de
conhecimentos e acabavam por acreditar que não tinham a possibilidade de criticar ou questionar sua aplicabilidade; (b) a de que os alunos não se interessassem pela proposta ou não sentissem necessidade de regras, fazendo com que a iniciativa fosse frustrada; (c) a mais oculta das preocupações, era a de que os alunos não elaborassem regras importantes, como as que dizem respeito a valores inegociáveis, tais como não bater nos colegas ou a importância do silêncio para algumas atividades específicas, que exigem maior concentração. Se isso ocorresse, as professoras deveriam “dar dicas” aos estudantes? Falar sobre uma regra não citada seria impor a vontade a vontade pessoal de qualquer um dos professores? Macedo (2005) alerta sobre o perigo da relativização de princípios éticos: mesmo quando os estudantes não tocam em assuntos relevantes ao grupo, há regras das quais não se pode abrir
mão e que devem e precisam ser discutidas. Acompanhar como foi a volta dos participantes à sala de aula, incumbidos do desafio de mudar a prática, permitiu verificar quão complexo o movimento da práxis é. A insegurança e o medo de fracassar foram narrados nas primeiras mensagens de áudio enviadas: “Estou gravando esse áudio para tentar partilhar com você as dificuldades de hoje. Hoje foi difícil e fiquei um pouco perdida. Enfim, eu sabia que isso iria acontecer” (MACABEIA). Já os problemas expressos por Theodora, não eram realmente “dificuldades”: revelavam, antes, uma necessidade de ser acompanhada, de saber se estava no
“caminho certo”: “Hoje eu fiquei tão louca! Além da reunião [com as famílias], hoje eu dei trabalho em grupo e eles ficam mais agitados! Mas não teve conflitos. […] Não teve maiores problemas. Assim… É aquela agitação. Normal, né?”.
Quando as mensagens chegavam, além de enviar aos docentes as orientações pedidas, eram também dadas indicações de artigos (suas referências bibliográficas) e, até mesmo, de vídeos disponíveis na internet, para que pudessem ampliar seus conhecimentos teóricos. O simples encorajamento parecia diminuir a sensação de insegurança:

[…] Às vezes, o que eu sinto é… Ai, meu deus! Queria tanto que elas [as
pesquisadoras] estivessem aqui, só pra me dizer o que fazer agora! E não dá,
né? Eu sei que não dá! Mas, aí, depois a gente dividia… E eu pensava: Ai, eu
agi certo, hoje? Não agi? Então, acho que isso (a troca) tem me ajudado.
(THEODORA).

Interromper um conflito silenciando os envolvidos só suspende momentaneamente a
desavença: eles retornarão à questão para resolvê-la, uma vez que seus afetos estão totalmente tomados pelo desejo de justiça ou vingança. Quando o docente escolhe não mediar um conflito e espera que assim ele se solucione, é porque desconsidera que, em sua ausência, o conflito tende a evoluir para agressões verbais e físicas mais acentuadas. Aliás, é justamente refletindo sobre tais episódios (ou operando cognitivamente sobre eles) que os estudantes podem desenvolver autonomia moral: autorregulação, empatia, solidariedade e apreço à justiça. Em uma mensagem de áudio, Macabeia analisou criticamente a forma como fez a mediação de conflitos e concluiu que havia fracassado. E, ao invés de perguntar como agir, foi organizando o pensamento oralmente, chegando à seguinte conclusão: “[…] acredito que
eu mesma vou me sentir mais à vontade de sair com os alunos [envolvidos no conflito] da sala e fazer essa mediação lá fora, né? Eu vou tentar essa estratégia da próxima vez”. Essa decisão acertada – de mediar o conflito sem expor os envolvidos a uma plateia – seria uma oportunidade para que os estudantes pudessem dizer como se sentiam, sem o constrangimento de serem julgados ou ridicularizados pelos colegas. Em especial para os adolescentes, é mais fácil reconhecer um erro ou demonstrar suas fragilidades no espaço particular do quem no público, diante de toda a turma. E tal como decidira, Macabeia passou a mediar conflitos só com os envolvidos e a discutir as questões que diziam respeito a todo o grupo, na sala de aula. Na entrevista final, ela concluiu:

“[…] essa mediação entre os alunos é muito potente e eu
queria conseguir aprimorá-la. Vejo essa ideia da mediação como o caminho possível. Porque conflitos a gente vai se envolver sempre, em qualquer esfera”. A expressão ‘caminho possível’ sugere que a professora compreendeu não haver receitas ou técnicas infalíveis, prontas e acabadas, embora exista um caminho a ser necessariamente percorrido, um processo em construção: “É muito potente, e quero aprimorar”.

Da prática-crítica, Carlos fez algumas reflexões:

Eu já trabalhava um pouco assim, só não tinha direcionado bem meu
trabalho para isso. E estou percebendo mais o que eu fazia no automático.
[…] Eu nunca tinha percebido: antes da gente começar a estudar esse
assunto, eu deixava os conflitos pelo caminho; eu não ia até o fim: resolvia
ali, naquela hora mesmo. Depois que nós estudamos e eu comecei a trabalhar
assim, passei a acompanhar mais isso: eu não observava, não levava até o
fim! Até intervinha sem perceber, mas, agora, sabendo da teoria, você vai
atrás, conversa, acompanha para ver se resolveu o problema. (CARLOS).

Com o passar dos dias, o fluxo de mensagens foi diminuindo, indicando uma maior
autonomia dos participantes, para atuarem com base nas orientações dadas pela teoria. Tal como ocorre com os estudantes, os docentes estavam passando pelo processo de construção de suas próprias aprendizagens. A práxis permitia-lhes viver experiências nas quais “toda verdade adquirida era reinventada, ou, pelo menos, reconstruída” (PIAGET, 1974, p. 18). Segundo esse mesmo autor (Idem), o papel daquele que orienta, seja ele um professor ou um formador, é discutir problemas úteis, obrigar a discussões de soluções, buscar a cooperação e a ‘acomodação’ de novos conhecimentos, por meio de “contraexemplos”. Outro aspecto que incidiu na melhoria da qualidade do clima escolar foi o fato de a práxis conferir intencionalidade à ação. Alunos resistentes às regras parecem comunicar que não vão se dobrar “a essa escola que os quer vencer”, como se tratasse de uma verdadeira guerra. A práxis em mediação de conflitos (nesse caso, um conflito entre a professora e um estudante) permitiu a Macabeia autorregular suas emoções, deixando de tomar a atitude do aluno como afronta pessoal: compreendeu-a como uma resistência diante da escola e de suas normas. É muito comum que docentes se sintam desafiados em sua autoridade, quando os estudantes infringem as regras. A professora descreve como a prática-crítica lhe permitiu superar a significação do conflito como ofensa pessoal para encontrar, nele, uma boa ocasião para educar valores morais, substituindo o respeito unilateral pelo respeito mútuo:

Eu chamei a atenção do Luís e, aí, ele falava: – “Mas não sou só eu!” Isso foi
algo também muito recorrente nos alunos: – “Não sou só eu; mas, não sou só
eu”… Ok, mas é você também! E a gente se desentendeu e ele ficou muito
bravo. Ficou me provocando e eu fui ficando extremamente nervosa. Ele é
pequenino, mas minha vontade era de chacoalhá-lo assim (risos). Vem “a
autoritária” [fez sinal como se emergisse do peito], tipo: – “Me obedece, seu
menino (risos). E isso aconteceu dois dias seguidos! No segundo dia, eu
falei: – “Vamos lá fora”! Aí, a gente foi lá fora, a gente ‘discutiu’ (fez o sinal
de aspas com as mãos), sabe”? De eu falar: – “Poxa, eu estou te
desrespeitando? Eu só estou chamando sua atenção, porque você também
está conversando! Claro que você não é o único! Mas, eu chamo atenção de
todos”! E eu ia falando assim: – “Olha, eu estou irritada com você! Te peço
desculpas, não tenho razão sempre. Acho que me excedi mesmo com você!
Mas, olha só, você estava atrapalhando e não quer assumir isso”! (risos). Eu
senti que eu tinha 10 anos de idade, né? (risos) Mas eu pude dizer para ele
que eu estava irritada com ele! E, depois disso, a gente está se dando super
bem de novo! […] Eu gostei muito dessa possibilidade de falar: – “Bom, eu
também me envolvo com eles, eu também posso recuar, pedir desculpas”.
“Acho que isso humaniza o processo, que humaniza a gente (professores)”.
(MACABEIA).

Ao apropriar-se da autoridade que deveria ser própria da função de professora,
Macabeia sentiu-se segura para resolver o conflito entre ela e o estudante e viver a experiência de respeito mútuo. Percebeu que ele não só não fragiliza a autoridade docente como, também, facilita a construção de vínculos, tão necessários para o desenvolvimento moral. O garoto, ao dizer que não era o único a atrapalhar o bom andamento da aula, reclama para si justiça, reconhecendo que “todos devem ser tratados como iguais diante da lei” (MACEDO, 1994). Para os sujeitos moralmente heterônimos, é fundamental confiar nos adultos que se colocam como referência moral. Segundo La Taille (2006, p. 113), quando percebem que as regras não são seguidas por todos, os sujeitos “se sentem enganados e injustiçados”. Luís, em outra situação de conflito, percebendo a possibilidade de diálogo com a docente, ao invés de se
rebelar, como fazia anteriormente, antecipou-se e pediu que Macabeia interviesse:

E aí, passou um tempo, não sei te dizer quanto. Deu um problema e o Luís
me falou: – “Professora, eu não sei desenhar e você quer que a gente crie um
símbolo do nosso grupo? Eu não sei desenhar! Então, eu não vou fazer!
Então, eu não quero ir para o grupo!” Ele entrou numa crise, porque não
sabia desenhar. E, aí, eu comecei a conversar com ele, fora do horário,
também para mostrar que talvez ele não desenhasse da maneira como ele
gostaria de desenhar, mas, se conseguisse fazer outras coisas… Então, eu fui
conversando para levantar esses elementos do que ele conseguia fazer. Se ele
conseguia pintar, se ele conseguia contornar, se ele escrevia com uma letra
diferente… Então, ele conseguia escrever com uma letra diferente: ele
conhecia a letra da pichação, a letra do grafite, ele conseguiria escrever! Ele
conseguiria inventar! E, aí, ele voltou para o grupo. Eles terminaram a
mascote e ele pintou uma parte… Ficou super legal! (MACABEIA).

A práxis realiza-se quando a prática, antes fundada na experiência cotidiana, passa a
ser crítica. Theodora afirma que “[passei] a saber por que estou agindo assim, a poder dividir, contar as histórias”. E Macabeia disse: “[a teoria] dá essa empoderada, mesmo. Agora, começo a pensar no conceito de heteronomia e autonomia. Eu não fazia isso […]. Foi muito legal” (MACABEIA).
Quanto à outra dimensão da práxis, a análise crítica da teoria a partir da prática, os
participantes apontaram alguns limites: a teoria piagetiana não considera que há outras
variáveis, além das relações de autoridade, que impedem o desenvolvimento da autonomia moral. Convencidos da eficiência da construção coletiva de regras e das resoluções de conflitos, a concretude da escola não permite que sempre sejam realizadas essas ações. As contradições entre o idealizado e o real impõem-se pela pressão do tempo curto para exercer diferentes tarefas: ensinar conteúdo e procedimentos, trocar de sala para atender outras turmas, avaliar conhecimentos diversos, garantir o direito dos estudantes com deficiência, que não podem ser atendidos de forma falsamente inclusiva (isso requer planejamento das ações
pedagógicas), disposição física e mental para mediar inúmeros conflitos em salas
superlotadas.
Outro limite apontado pelos docentes foi o de terem percebido que os estudantes com
comportamento mais violento, que se envolviam mais frequentemente em brigas e agressões verbais, tinham em comum o fato de serem analfabetos e/ou viverem em extrema pobreza. Além da educação em valores morais ofertada pela família e/ou escola (ou da falta dessa educação), os estudantes também respondem afetivamente à violências decorrentes da exclusão social, como o analfabetismo, a vulnerabilidade social, a violência doméstica. Ou seja, se desconsiderarmos a totalidade social para além do ambiente escolar, podemos incorrer na falsa ideia de que a violência na escola se deve apenas aos velhos métodos ou às posturas conservadoras, reforçando os modismos pedagógicos e as soluções simplistas.

O Severino é um aluno que está na escola desde o primeiro ano e ele tem um
histórico de vida muito sofrido […]. A mãe do Severino é usuária de drogas:
cuidou dele sempre loucona, morando na rua. Deu lixo pra ele comer,
transava com outros caras, se prostituía na frente dele. E enfim… Ele é um
garoto que cresceu nesse meio só de sofrimento. Foi nesse contexto que o
pai pegou o Severino e começou a criá-lo. Eles moram nos fundos de uma
fábrica em que o pai trabalha. Ele vem sempre com uniforme, às vezes, sujo,
com a unha suja… E ele… Ele é cleptomaníaco: ele rouba, desde o primeiro
ano. Ele pega as coisas das pessoas. Ele vê um brinquedo, de repente o
brinquedo some e, de repente, o brinquedo está na mochilinha dele! Uma
vez, ele viu uma caixa de balas, roubou a caixa e escondeu na mochila dele.
Então, sempre que some alguma coisa na sala, falam: – Ah, é o Severino!
Severino não lê, não escreve” […]. E ele tem muita dificuldade para seguir
regras: entra e sai na hora que quer. Ele não é agressivo, mas se ele resolveu
que vai sair da sala, ele sai. Num momento de elaborar as regras, ele
simplesmente saiu da sala. E eu saí atrás dele […]. Não tivemos uma
conversa propriamente dita, mas eu falei com ele. Insisti que ele olhasse pra
mim, falei da importância de ele estar na minha aula etc. Ele voltou, ficou,
mas não participou. Na aula seguinte, ele entrou pelo vidro na sala da CP e
mexeu na bolsa dela. (MACABEIA)
Sandro é um aluno não alfabetizado. Tem 13 anos e está fazendo o 6º ano
pela segunda vez. É um aluno que eu me lembro dele quando ele estava no
quinto ano, já na escola, e tinha sempre muita reclamação dele: que é um
aluno que não obedece às regras, não para na sala, xinga a professora, xinga
os colegas, mexe no material dos outros… E, aí, ele veio para o sexto ano e
deu os mesmos problemas. A mãe dele o transferiu de escola, porque
trabalha na terceirizada da escola (limpeza) e não queria se queimar com a
encarregada dela, né? E, aí, transferiu o Sandro de escola. Mas, o Sandro
voltou este ano para escola: na outra, ele foi reprovado, retido. E é um aluno
que está no sexto ano, não lê, nem escreve e tem este comportamento
inadequado. Vira e mexe, ele falta. (MACABEIA)É um caso bem específico
[…]. A questão é a autoestima dele, que é muito baixa […]. Ele não consegue
fazer nenhuma atividade e, então, vai mexer com os outros. Ele tem muita
dificuldade: escreve muito errado e, quando ele erra e alguém ri, ele já
agride. Eu percebi isso, que ele tem essa questão da autoestima… Muito
complicado. E chora! Por tudo, ele chora! Aí, ele mexe com os outros, ele
provoca, porque a sala não o aceita. Então, eu percebi essa questão, a
questão da autoestima dele. Aí, ele desequilibra a sala. (THEODORA).

Esses dados vão ao encontro dos resultados de pesquisa a respeito das causas da
violência entre estudantes na Alemanha (FUNK, 2002), em que se concluiu que: (a)
estudantes que agridem fisicamente os outros tendem a ser provenientes de famílias altamente dominadoras, rígidas e punitivas; (b) estudantes com comportamento violento têm, em geral, o desempenho escolar insatisfatório, sobretudo os repetentes.
A compreensão da escola como parte de um todo maior, constituído por múltiplas
determinações, impõe-nos o desafio de pensar formas de não sucumbir às manifestações de violência que nela ocorrem, até que o problema maior – a desigualdade social – seja resolvido. Concordando que o sistema capitalista mantém as desigualdades sociais e retroalimenta essas e outras formas de violência, discordamos reiteradamente que nada resta fazer a não ser lamentar a situação. Se é verdade que há práticas pedagógicas que podem contribuir na diminuição dos episódios de violência entre estudantes, também é verdade que a luta organizada por políticas públicas e por outro modelo econômico político é práxis de enfrentamento da violência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O par dialético teoria-prática, sendo constituído por contrários que se negam entre si,
ao ser posto em movimento de maneira unitária, promove a superação de ambas as
dimensões: tanto a prática como a teoria podem ser pensadas criticamente e reinventadas. As práticas pedagógicas de enfrentamento à violência iluminadas pela teoria piagetiana contribuíram para sua diminuição, entre os estudantes. Todavia, outras mediações, como o analfabetismo, a desigualdade social e as condições reais de trabalho docente devem ser levadas em conta, para que a melhoria no clima escolar e o desenvolvimento moral dos estudantes alcancem a todos (as), uma vez que a educação deve ser inclusiva, reafirmando o compromisso social de “nenhum a menos”. Para além de teorias que se efetivam apenas quando se trata de estudantes ideais, com condições ideais, evidencia-se a relevância de uma teoria do desenvolvimento moral que não desconsidere as mediações e parta da realidade que se apresenta, com seus desafios e contradições, para superar o problema da violência entre estudantes. Não fazemos coro com o discurso ingênuo de que a escola sozinha pode resolver esse problema. Todavia, concordamos com a psicologia sócio-histórica quanto à assunção do compromisso com a transformação da realidade e com a superação da sociabilidade capitalista. Por isso, a relevância da construção de uma teoria de desenvolvimento moral que leve em conta a totalidade social e as múltiplas determinações que constituem tanto o sujeito singular quanto o fenômeno da violência, na escola e na vida.

REFERÊNCIAS
ABRAMOVAY, M.; RUA, M. G. (2002). Violência nas escolas. Rede Pitágoras. Versão
Resumida. Brasília: UNESCO Brasil.
ABRAMOVAY, M. (Coord.). (2006). Cotidiano das escolas: entre violências. Brasília:
UNESCO, Ministério da educação.
FERNANDES, E. P. (2017). Construção coletiva de regras e resolução de conflitos:
contribuições para o enfrentamento da violência entre alunos (Dissertação de Mestrado).
Programa em Educação: Psicologia da Educação – Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo.
FREIRE, P. (1981). A Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. FULLAN, M.
HARGRAVES, A. (2000). A escola como organização aprendente: buscando uma educação
de qualidade. 2ª edição – Porto Alegre: Artes Médicas Sul. FUNK, W. (2002). A violência
nas escolas alemãs: situação atual. In: DEBARBIEUX, E. BLAYA, C. (Orgs). Violência nas
escolas: Dez abordagens europeias.Brasília:UNESCO.
MACEDO, L. (1994). Ensaios construtivistas. São Paulo: Casa do Psicólogo.
MACEDO, L. (2005). Disciplina é um conteúdo como qualquer outro. Entrevistado por
Márcio Ferrari. São Paulo: Nova Escola, ago.
MARX, K. (2007). Teses sobre Feuerbach. In: MARX, K. ENGELS, F. A ideologia alemã: a
crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes, Feuerbach, B. Bauer e Stirner,
e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. São Paulo: Boitempo.
PIAGET, J. (1974).Para onde vai a educação? Trad. Ivette Braga. Rio de janeiro: José
Olympio.
PIAJET, J. (1994). O juízo moral na criança. Trad. Elzon Lenardon. 4 ed. São Paulo:
Summus


*Doutora em Educação: Psicologia da Educação (PUC-SP).
** Professora doutora do Programa de estudos Pós-graudados em Educação: Psicologia da Educação (PUC-SP)

Para citar esse artigo:

FERNANDES, E. P.; DAVIS, C. L. F. A práxis pedagógica de enfrentamento e prevenção à
violência na escola. Atas do IV Encontro Luso-Brasileiro Trabalho Docente e Formação de Professores: Profissão docente, investigação e sociedade: diálogos múltiplos. Universidade de Lisboa. Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. Lisboa, jun. 2019. p. 574 – 582. Disponível em: http://trabalhodocenteformacao2019.ie.ulisboa.pt/livro-de-atas/

Imagem  —  Publicado: 13/01/2022 em Reflexões

MEU CORPO, VOSSAS REGRAS

Publicado: 10/01/2022 em Reflexões

ELIANE PINHEIRO

capas

Uma coisinha sutil do “feminismo das famosas” q me incomoda e fica meio que emaranhado na reprodução do machismo: nós, feministas, reafirmamos que o corpo da mulher é livre, para ser gordo ou magro, para fazer sexo, para ter prazer, para ser peludo ou sem pelo. Uma resposta à opressão, ao controle do corpo da mulher. Passamos a odiar a representação do corpo da mulher como a serviço do desejo e aprovação masculinos, objetificado, enfeitando propaganda de cerveja, carro e pasta de dente; nos tomavam por burras, por “mulheres bunda”, q só tinham o corpo para mostrar.
E hoje?
E hoje tá meio igual.
As gordas continuam com corpo coberto, sem foto da bunda grande, da barriga mole com estria e celulite. As mulheres magras com as fotos de biquíni para aprovação masculina e na legenda um jargão: “Meu corpo, minhas regras”, “sou livre”, o que nem sempre significa conhecimento ou algum compromisso com as questões feministas. O corpo magro sempre esteve livre. Mesmo com as ajudinhas das novelas e do programa da Fátima Bernardes a questão do corpo não está tão resolvida assim. O prazer, o sexo, ainda continuam sendo tabu. O aborto ainda mata mulheres pobres.
Uma mulher que está dentro dos padrões sexistas de beleza e posta foto da barriga chapada é tão rebelde quanto um hétero que se orgulha de sua orientação ou do branco que celebra sua raça: revolução alguma. Reafirmação do padrão e só. Incrível é quem ama o próprio corpo socialmente odiado de “mulher relaxada que não se cuida”. A mulher samambaia não feminista e a mulher samambaia feminista não cumprem, ambas, a mesma função de objetificação?
O grito do e pelo corpo das mulheres vai além de manter antigos comportamentos com novos slogans. É reafirmar que a nossa sexualidade não está a serviço de macho escroto, lutar pela descriminalização do aborto, negar as teorias essencialistas que pregam a existência de uma “natureza feminina” que se completa na maternidade ou na plantação de mudas num jardim, cagar para os estereótipos de gênero, denunciar o assédio e o estupro e reivindicar o direito a andar sem medo nas ruas, brigar pela equidade de acesso a algumas funções ditas masculinas, buscar a emancipação das próprias castrações (aprender a ter prazer, a gozar), amar o peito caído, a coxa gorda, a bunda seca, o cheiro natural da vagina, sair dessa neurose imposta de inadequação, de que sempre há algo errado conosco.

ELIANE PINHEIRO

A arte, para Lukács e para Vigotski (cada qual com sua teoria) é a união do ser singular ao universal e a união do afeto e da cognição capaz de provocar uma experiência orgásmica chamada de catarse: a sensação de compreender e ser compreendido, de sentir o que não se viveu ou ressignificar o vivido, um “curto-circuito”, nas palavras de Vigotski. Usar a arte pra fins formativos/pedagógicos é, segundo Vigotski, uma deturpação da obra; é submetê-la a outros fins. Não existe isso de “mediação estética” em Vigotski, pelo menos não nesses termos de lição de moral, de arrancar da obra o q nela não existe originalmente:

[…] Isso está em contradição radical com a natureza da emoção estética, é
necessário observar que isso exerce uma influência devastadora sobre a
própria possibilidade da percepção artística e da relação estética com o
objeto. É natural que sob essa concepção a obra de arte perde qualquer valor
autônomo, toma-se uma espécie de ilustração para uma tese moral de cunho
geral; toda a atenção se concentra precisamente nessa última, ficando a obra
fora do campo de visão do aluno. De fato, sob essa interpretação não só não
se constroem nem se educam hábitos e habilidades estéticas, não só não se
comunicam flexibilidade, sutileza e diversidade de formas às vivências
estéticas como, ao contrário, transforma-se em regra pedagógica a
transferência da atenção do aluno da própria obra para o seu sentido moral.
O resultado é um amortecimento sistemático do sentimento estético, sua
substituição por um momento moral estranho à estética e daí a natural
repugnância estética que noventa e nove por cento dos alunos que passaram
pela escola secundária experimentaram pela literatura clássica. (VIGOTSKI,
1924/2001, p. 328)

A mediação possível é da própria obra com quem a aprecia. Não importa quem seja a/o artista, se presta, se não presta, se é bom moço, se é de esquerda ou de direita.

É certo que ninguém nasce sabendo apreciar uma obra e talvez o que se chame de mediação é esse “ensinar a olhar”, tal como aquela historieta de Eduardo Galeano. Ensinar a olhar não é mastigar, não é imprimir na obra o que nela não há, não é acrescentar-lhe nem dela tirar nada. É o convite aos detalhes, à educação dos sentidos. Esse ensino nada tem a ver com atribuir significações, em terceirizar o sentido pessoal.

Lukács diz que escrever uma doutrina com objetivo de ensiná-la não é arte, é panfleto. E emocionalismo puro, sem algum esforço cognitivo, é manipulacao (próprio da cultura de massa). Ao contrário da cultura de massa, a arte não perde a validade, pq é história humana eternizada na obra. Cura o/a artista, cura o/a apreciador. Fere o/a artista e o/a apreciador. Desperta, invade, penetra. A arte não é óbvia. Não é unânime. Não carece de explicação, ao menos ao primeiro contato entre apreciador e obra. A arte só precisa de “uma alma suficientemente aberta para entendendê-la”.

Citação  —  Publicado: 10/01/2022 em Reflexões

ELIANE PINHEIRO

Li o artigo da Folha de hoje, “Contradição entre desigualdade e pautas identitárias não precisa existir”, de Rodrigo Nunes. De cara, o título me deu um quentinho coração porque parecia anunciar que a pauta de identidade e as questões do trabalho explorado não estão dicotomizados no real. Mas o autor, ao criticar a crítica marxista, parece escorregar em alguns erros conceituais (sob o ponto de vista marxista) ao afirmar que: identidade e trabalho não estão em contradição; que identidade e universalidade não estão contradição; que universalidade e trabalhador branco cis gênero sejam sinônimos. Parece, talvez eu esteja errada, que o autor fala sobre a dialética singular-particular-universal sem ter clareza do que seja o singular, o particular e o universal.

Uma cilada que os críticos ao marxismo podem cair (e não afirmo que seja esse o caso do artigo em questão, já que não conheço o autor e não sei se ele é marxista) é tomar uma categoria de análise do método por seu significado dicionário. Trabalho, contradição, particular, singular, universal, identidade etc. são categorias que não correspodem ao seu significado usual do cotidiano e para entender essas categorias é preciso ir para além do que aparentam ser, é necessário se debruçar detidamente sobre o método materialista histórico-dialético.

A começar pela categoria “contradição”, afirmamos que sim, que os elementos apresentados pelo autor no título estão em contradição. Isso não significa que são incompatíveis ou que estão dicotomizados. Entendemos “contradição” sob a perspectiva dialética, de que as coisas estão em oposição todo o tempo, na natureza, nas relações humanas, nos fenômenos… No real tudo é movimento de contrários que se repelem e se constituem mutualmente. Confuso? Um pouco… Daí minha preocupação com o aligeiramento de discussões em que temos que apertar os conceitos para que caibam em pequenos textos. Vale a leitura de Leandro Konder, um livrinho delicioso chamado “O que é dialética”.

Já o “universal” de que falam Marx e Engels não é um modelo de homem (o trabalhador branco europeu cis-gênero), mas no sentido de “genericidade humana”, isto é, todas as potencialidades humanas, todas as riquezas materiais e imateriais que podem ser produzidas pelo ser genérico. A arquitetura das pirâmides egípcias, a literatura de Machado de Assis, a matemática, a vacina, o tratamento da água, a ética, a estética… são produções humanas que são reproduzidas ou dadas a conhecer de geração em geração e por isso, não pertencem ao Egito, ao Machado de Assis etc., mas ao humano genérico, ao universal. O singular, por sua vez, é a mulher, o indígena, o trabalhador, a escola, a saúde, a religião etc.Entre o singular e o universal está o particular (que não é sinônimo de singularidade), que são as partezinhas que compõem e mantêm em relação constante o singular e o universal.

O trabalho (e não o trabalhador) e a linguagem, por serem o meio pelos quais o humano se tornou humano (e não apenas mais um membro de uma espécie animal específica) são da categoria do universal. Trabalho, por fim, é outra categoria da teoria marxista, que vale outro texto, porque não é o que entendemos, no senso comum, como atividade remunerada ou as tarefas cotidianas obrigatórias. O materialismo histórico-dialético é um método para apreensão da realidade (por constantes e provisórias aproximações) para sua superação, ou seja, um pressuposto teórico-metodológico para TRANSFORMAÇÃO DA REALIDADE. Não é punhetação filosófica, nem uma disputa teórica. É uma práxis.

As críticas que miram no marxismo recaem sobre o desconhecimento das categorias do marxismo. Aquela velha história: quem critica, deve conhecer profundamente o objeto de sua crítica.

E o erro dos marxistas é falarem pra dentro, não comunicarem de forma compreensível e clara o que estão de fato querendo dizer para além dos estudiosos do materialismo histórico-dialético. E tornar o marxismo um clube fechado de intelectuais é distorcer sua essência: lembremos que Marx não foi aceito pela academia e seu objetivo era apreender a realidade (que naquela época e hoje ainda é constituída pelo Capital e pelo capitalismo) para MUDAR O MUNDO. Para que proletários e proletárias de todo o mundo fossem livres da alienação do trabalho e de todos “os sentidos e qualidades humanas”.